quinta-feira, 12 de março de 2009

Matematico e Matemática

O que é a matemática? O que é o matemático?
Carlos Eduardo Mathias Motta
O que é a Matemática? O que é o Matemático? Estas duas perguntas protagonizaram épocas distintas e foram respondidas diferentemente ao longo do tempo. Não são perguntas que exibem apenas o nosso desejo de compreender o que é a matemática ou o que é o matemático, mas também de compreender a relação entre as diferentes representações “matemática-ciência exata e objetiva” e “o ser humano que a pratica”. Este texto é mais um devaneio do que uma resposta.
Em um sentido estrito, a matemática não existe. Apresso-me em dizer que não existe como algo objetivo ou como um “a priori” do Universo, conforme propôs Kant acerca da Geometria de Euclides, ou como propuseram outros platonistas. Imaginar a existência de um mundo imutável de verdade, do qual a matemática é inquilina, é algo triste e redutor por demais: nenhum mundo pode ser constituído apenas por substantivos. O homem deve almejar igualmente aos adjetivos e estes, por sua vez, são alcançáveis apenas por meio dos verbos: por meio da ação humana, do viver de experiências, do viver da vida! A boa prática matemática é aquela que perpassa posturas alinhadas à experiência ética, é aquela que inclui o outro e o mundo em que vivemos. É por meio de nossas posturas que seremos verdade. A verdade não é destinada a ter a sua existência reconhecida, ela é, sim, destinada a ser vivida. O homem não tem a capacidade de construir matemática, não pelo menos como alguém constrói um cadeira. Ele tem, sim, uma percepção de mundo, do que julga ser um problema e o conseqüente desejo de significar qualquer ação capaz de resolvê-lo. Falar "matemática" é uma convenção lingüística, forçada pelo prazer da “substantivação”, é a necessidade de dar nome às nossas próprias práticas e de buscar ver o estável no que é variável, de tornar objetivo o que só se torna do mundo no momento e na forma em que é posto por nós e significado por outros. A célebre fórmula do volume da esfera, a partir de seu raio, V=(4/3).PI. r^3, que os platonistas julgariam ser um bom exemplo para a unanimidade e a perfeição da "matemática" é apenas mérito do formato esférico, cujo poder de comoção sobre a nossa curiosidade é imenso, assim como é a sua adequação às práticas humanas mais corriqueiras. A fórmula dada acima é filha do casamento entre o objeto esférico e o homem, filha esta gerada pelo ato de investigação, bem delimitado pelas características de nossos meios culturais, físico e histórico. Todos os formatos tridimensionais possuem características, que serão "situadas matematicamente" desde haja o interesse pela investigação: o ponto de chegada de uma estrada cujo início foi o desejo humano.É a nossa inteligência que permite-nos conhecer a realidade, é graças a ela que podemos ajustar o nosso comportamento ao meio, cumprindo a função adaptadora do viver ao sobreviver. Mas, ao contrário da inteligência animal, a inteligência humana cumpre tal função de modo extravagante: adapta-se ao meio, adaptando o meio às suas necessidades, algo parecido com o que disse Vicente Carvalho em “Velho Tema”. Além de uma função adaptadora, nossa inteligência realiza uma outra função: ela inventa possibilidades. Tal função é a essência da prática matemática...não apenas conhece o que as coisas são, o que dá segurança, mas também o que elas podem ser, o que causa desassossego. Não se contenta com o foi, o é e o será, mas coloca o poderia ser e o seria se, os modos verbais da irrealidade. À percepção do existente junta-se o arrependimento, a decepção, a esperança, o plano e a ameaça. Assim a realidade humana é expandida pelas possibilidades que a inteligência lhe inventa, ao integrá-las em seus planos. Coloca-se então uma faceta tipicamente humana: conhecer a realidade e inventar possibilidades, fazendo ambas as coisas: gerando e gerindo irrealidade.O senso comum tem na matemática um símbolo da verdade absoluta, do conhecimento ausente de possibilidades, do caráter normativo, a ponto de assumi-la como o alfabeto com o qual o mundo foi escrito (Galileu Galilei). Talvez o homem precise substantivar suas práticas matemáticas por meio desta caracterização redutora: a matemática é língua materna do universo. Mas parece que o homem se esquece do seu maior bem, a curiosidade, e, por meio do uso dos malditos substantivos, bloqueia a reflexão sobre as suas próprias questões. Viva os adjetivos! Só o homem é capaz de usá-los!
Como se dá o olhar de um matemático diante de um determinado fenômeno? Por exemplo, ao ver um determinado objeto cair, é feita a seguinte pergunta ao matemático: existe “um corpo em queda livre”, existe “o movimento uniformemente variado de um corpo rígido sob a livre ação da gravidade” ou há “modelos em diferentes níveis para o movimento de queda livre”? São três possibilidades distintas para a percepção do fenômeno “corpo em queda livre”. A escolha de qual, dentre as três possibilidades citadas, revelaria melhor o olhar de um matemático? Creio que a primeira é tão improvável quanto conseguir olhar para uma determinada palavra, sem a ler. As letras são linhas, desenhos, mas o nosso olhar é um olhar inteligente e curioso que não descansa nelas, vai além. Ao ver um corpo em queda livre não apenas testemunha-se um fato, mas também lê-se e significa-se um comportamento. O que se lê poderia considerar a resistência do ar, por exemplo. Tal hipótese eliminaria a segunda possibilidade colocada. Nossa leitura sempre levará em consideração com quem falamos a seu respeito; ela sempre estará impregnada de nós mesmos: de nossa intenção, de nossa postura, de nossa disposição em sermos meticulosos acerca das possibilidades do citado movimento, mas, principalmente, ela estará impregnada do contexto (social, político, histórico, afetivo, etc.) no qual estamos inseridos: de vida. Assim, um corpo em queda livre torna-se algo subjetivo, apesar de nossa leitura inspirar naqueles que nos ouvem, por mais honestos que sejamos acerca de todas as nossas possíveis leituras daquele movimento, um aparente desejo da ciência de formalizar algo objetivo capaz de regê-lo, de prever todo possível acontecimento, de revelar todas as possibilidades do movimento. E é desta forma que a terceira possibilidade de percepção de um corpo em queda livre torna-se a mais comum e a mais equivocada, a meu ver. Modelos são concepções objetivas da irrealidade. O que nos torna bons matemáticos? A criação de tais modelos?
O que deve instituir ao homem a figura de um bom matemático é o quanto sua leitura subjetiva afeta positivamente, eticamente falando, o contexto ao qual ele está inserido, mas, jamais, qualquer falsa impressão causada àqueles que o ouvem no momento em que lhe julgam ser um “médium” da ciência à serviço da construção da “Verdade”. Questionamentos “objetivos” não tornam a Ciência, nem seus métodos, objetivos. Pelo contrário, reforçam a peculiaridade e a potencialidade do indivíduo. A negação da singularidade imprime solidão sobre quem a nega, pois vela a percepção do que é plural, fragilizando conseqüentemente o conceito do que é ético. O homem inventou a música de câmara e a câmara de gás. A nosso crédito figuram a beleza e o horror. Somos forçados a escolher e nada nos garante que o façamos com acerto. Daí que seja necessário discernir as possibilidades das nossas contribuições. A ética não é senão o salva-vidas a que temos de nos agarrar, depois de termos naufragado nas possibilidades que a nossa própria inteligência engendrou, objetivamente.Uma linguagem, ao contrário de uma língua, é subjetiva por natureza, ela é de quem fala e é de quem ouve. Por isso digo que, em sentido estrito, a matemática não existe. Existe sim um mundo que “fala” e um curioso que “ouve”: o matemático, um poeta que, no corromper da língua com a possibilidade subjetiva, resgata a linguagem e, através dela, fala ao mundo de si. Para um poeta, o domínio da língua é fundamental. Mas este fato não advoga a favor da tese que afirma a língua como um “a priori” da linguagem. Em meu ponto de vista, ocorre justamente o contrário: a linguagem é um a priori da língua. A curiosidade, o gerar e o gerir da irrealidade, a inteligência humana, o homem, esses são os “a priori” da matemática. Um poeta adota um determinado gênero literário ou ele coloca-se, escreve-se enquanto sujeito inserido em um contexto (social, cultural, histórico, etc.)? O que é um gênero senão uma classificação objetiva, concebida na análise de uma fotografia, um modelo que busca definir similaridade? Ora, foi o Parnasianismo que influenciou e gerou os trabalhos de Vicente Carvalho e de Olavo Bilac ou foram as peculiaridades, as contribuições únicas de cada um, que fundamentaram e instituíram o Parnasianismo enquanto gênero literário? Foi a matemática que norteou o trabalho dos homens em primeiro lugar ou foram as subjetividades livres e criadoras daquelas inteligências que constituíram a matemática enquanto linguagem? É neste sentido que digo existir o matemático: enquanto subjetividade, enquanto humano. A matemática vem depois, enquanto possibilidade, um rebento da criatividade, mas jamais enquanto norma ou modelo de qualquer coisa, seja do mundo, seja de si.
Desta forma, não consigo ver a matemática como algo exterior e independente do homem. Ela se faz linguagem do mundo no momento em que existe alguém que a precisa falar para ser. Não creio, portanto, em nenhum projeto pessoal para tornar-se um grande matemático se este projeto não for, necessariamente, isomorfo a um outro projeto: o de ser um grande homem. Ao longo da história, o homem adotou, muitas vezes, práticas matemáticas estúpidas, outras foram belas, inquietas, ansiosas e generosas, outras foram destruidoras. Tais adjetivos foram assumidos por poucos e velados por todos ao ver-se a matemática como quem vê uma cadeira. A pobre cadeira que vive sem o homem cansado é só madeira, madeira que passa.
Para aqueles que acreditam no homem,
Palavras de alguém que buscou deixá-lo em resposta aos outros mais românticos,
Mas que, sabendo ou não,
Falava de si...apenas de si...

Velho Tema
Vicente de Carvalho
Só a leve esperança em toda a vida
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.
O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.
Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,
Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.

Um comentário:

Marta Gonzalez disse...

Nossa! Que texto genial!!!
Finalmente li ago diferente sobre Matemática...esse sujeito é brilhante!